Luis Maffei transforma queda do Vasco a segunda divisão em
poesia
Jornal do Brasil
Virgínia Boechat, Jornal do Brasil
RIO DE JANEIRO - O termo rebaixamento pode significar
diminuição, afundamento, perda de dignidade, humilhação. Descreve um movimento
de queda que tem sentido do campo espacial até o moral. Rebaixar algo é
torná-lo menor ou situá-lo mais abaixo. Esse é o tema de 38 círculos, lançado
em maio pela editora Oficina Raquel, o terceiro livro de poemas de Luis Maffei,
que parece demarcar uma sensível maturidade de sua escrita. A redução e a
desonra, que oscilam entre o risco e o fato no cotidiano, surgem encenados ao
longo dos 38 poemas do volume, assentados numa metáfora estruturante, a das 38
partidas de futebol disputadas pela equipe do Vasco da Gama no Campeonato
Brasileiro da Série B de 2009. Seria banal o motivo, sobretudo para quem não é
torcedor de tal esporte ou time, se não fosse tão representativo do lugar
último da paixão.
Tom trágico
Esse é o time decaído e ainda sob ameaça. Acuado o torcedor,
sujeito, sobrevive ao longo de um dia-a-dia datado entre o primeiro poema,
Vasco 1 x 0 Brasiliense (09, 05, 09), e o último, Ipatinga 2 x 0 Vasco (28, 11,
09), entre vitórias e derrotas menores, em meio à pequenez da realidade. Seja qual
for o resultado de cada partida, o percurso nesses sete meses que o livro
acompanha é direcionado para o declínio da noção de real, do homem, das coisas
e pessoas amadas: vamos descendo e é abaixo (...). Começo, contudo, a saber a
exigência do inferno, pago o que tenho, tenho mais, não tenho tanto .
Acena um real repleto de jogos de força mesquinhos, círculos
de poder e impotência. São disputas ora tratadas com tom trágico, Se não temos
mais voz/ se voz não tenho/ envolvo a meu peito uma espada e disparo , ora com
ironia: Exemplo: receba dicas de como ter uma vida saudável, envie SAÚDE para
83772 , num poema que esgarça uma mudez feita de ruídos vazios: Enquanto o
mundo falava, poucos ouviam o que o mundo falava.
Rebaixamento ainda do nome de um herói da epopeia da língua
portuguesa: o célebre Vasco da Gama de Os Lusíadas é tornado um anti-herói, e o
time carioca de futebol precisa atravessar um campeonato menor e não mais
vastos mares - o fator importante também por ser o autor um especialista em literatura
portuguesa. O lugar da superação está agora situado no torcedor, que, esse sim,
faz um caminho de triste descobrimento: Eu que nunca atravessei o/ inferno/ no
lugar do sorriso ponho/ uma nuvem, armas brancas e particulares compreensões
(...) . São os versos iniciais do livro, em um poema onde surge decaído um tipo
de D. Sebastião, que de rei português a quem o épico de Camões foi dedicado
torna-se um comum: coisas podem ser simples/ podem/ entende Sebastião/ ser de
frente à arquibancada simples .
A ruína é ampla, mas minuciosa. É assistida por um entorno
fantasmagórico em que Um misto de vaia e silêncio angustiante cerca/ a noite de
São Januário, o locutor fala e é/ tudo (...) (p.20), no poema 9- Vasco 0 x 0
Bragantino (30, 06, 09), em que a derrota está no empate e a torcida é
metáfora.
Outras pequenas perdas estão ali, nossas e das paixões, como
no blecaute, contra o qual nada podemos fazer, que deteve a transmissão do jogo
e o preparo do café, Só pela uma tanta a luz voltou e/ vi o seco pó à espera de
alguma água (...) , ou na prioridade dada à novela: Porque vivo num tempo sem
ostras, com dinheiro/ no bolso dos outros e discretas ditaduras, chove/ granizo
no campo e a televisão deixa este jogo para/ não atrasar muito a novela (...) .
Falta de pernas
Ironia triste diante do cotidiano de impossibilidades, da
força da propaganda e valores duvidosos, ainda no mesmo 28- Bragantino 0 x 0
Vasco (03, 10, 09), sem acesso à transmissão, resta ao sujeito se redimir:
tentarei amar como se amasse até o extrato de tomate que surge/ numas
propagandas (...) . Perder não é simples nem compensado com amor: Mentira que
perdi, perdi/ meu tempo atrás de um/ posto de gasolina ou diante de/ pouca
gente a me escutar dizer poemas / Sem ti não há mergulho nem piscina .
Resta-lhe parar, por falta de pernas , taça na mão. A
estruturada linguagem poética eleva-se contra a pequenez, na dura digestão da
propaganda e do mundo atual, nos jogos com a tradição, em ultrapassar o que
seria uma escrita apenas pretensamente culta, para dar lugar a uma que retalha
linguagens, Escolher persona, eu penso, porra é/ escolher persona? It's not up
to me (...) , e entalha versos que tocam hoje o poeta Sá de Miranda de séculos
atrás: "Meu tudo preto, já que sói ser coisa alguma, é sempre insônia (...)".
Vitória no uso da sextina no poema 32 Vasco 2 x 1 Bahia (24, 10, 09), da
redondilha maior, onde Da casa se nota o mundo , e do decassílabo, pois no
mundo está em perigo todo o resto .
Nenhum comentário:
Postar um comentário