quarta-feira, 24 de maio de 2017

escritores vascaínos Luis Maffei


Luis Maffei transforma queda do Vasco a segunda divisão em poesia
Jornal do Brasil

Virgínia Boechat, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - O termo rebaixamento pode significar diminuição, afundamento, perda de dignidade, humilhação. Descreve um movimento de queda que tem sentido do campo espacial até o moral. Rebaixar algo é torná-lo menor ou situá-lo mais abaixo. Esse é o tema de 38 círculos, lançado em maio pela editora Oficina Raquel, o terceiro livro de poemas de Luis Maffei, que parece demarcar uma sensível maturidade de sua escrita. A redução e a desonra, que oscilam entre o risco e o fato no cotidiano, surgem encenados ao longo dos 38 poemas do volume, assentados numa metáfora estruturante, a das 38 partidas de futebol disputadas pela equipe do Vasco da Gama no Campeonato Brasileiro da Série B de 2009. Seria banal o motivo, sobretudo para quem não é torcedor de tal esporte ou time, se não fosse tão representativo do lugar último da paixão.

Tom trágico

Esse é o time decaído e ainda sob ameaça. Acuado o torcedor, sujeito, sobrevive ao longo de um dia-a-dia datado entre o primeiro poema, Vasco 1 x 0 Brasiliense (09, 05, 09), e o último, Ipatinga 2 x 0 Vasco (28, 11, 09), entre vitórias e derrotas menores, em meio à pequenez da realidade. Seja qual for o resultado de cada partida, o percurso nesses sete meses que o livro acompanha é direcionado para o declínio da noção de real, do homem, das coisas e pessoas amadas: vamos descendo e é abaixo (...). Começo, contudo, a saber a exigência do inferno, pago o que tenho, tenho mais, não tenho tanto .

Acena um real repleto de jogos de força mesquinhos, círculos de poder e impotência. São disputas ora tratadas com tom trágico, Se não temos mais voz/ se voz não tenho/ envolvo a meu peito uma espada e disparo , ora com ironia: Exemplo: receba dicas de como ter uma vida saudável, envie SAÚDE para 83772 , num poema que esgarça uma mudez feita de ruídos vazios: Enquanto o mundo falava, poucos ouviam o que o mundo falava.

Rebaixamento ainda do nome de um herói da epopeia da língua portuguesa: o célebre Vasco da Gama de Os Lusíadas é tornado um anti-herói, e o time carioca de futebol precisa atravessar um campeonato menor e não mais vastos mares - o fator importante também por ser o autor um especialista em literatura portuguesa. O lugar da superação está agora situado no torcedor, que, esse sim, faz um caminho de triste descobrimento: Eu que nunca atravessei o/ inferno/ no lugar do sorriso ponho/ uma nuvem, armas brancas e particulares compreensões (...) . São os versos iniciais do livro, em um poema onde surge decaído um tipo de D. Sebastião, que de rei português a quem o épico de Camões foi dedicado torna-se um comum: coisas podem ser simples/ podem/ entende Sebastião/ ser de frente à arquibancada simples .

A ruína é ampla, mas minuciosa. É assistida por um entorno fantasmagórico em que Um misto de vaia e silêncio angustiante cerca/ a noite de São Januário, o locutor fala e é/ tudo (...) (p.20), no poema 9- Vasco 0 x 0 Bragantino (30, 06, 09), em que a derrota está no empate e a torcida é metáfora.

Outras pequenas perdas estão ali, nossas e das paixões, como no blecaute, contra o qual nada podemos fazer, que deteve a transmissão do jogo e o preparo do café, Só pela uma tanta a luz voltou e/ vi o seco pó à espera de alguma água (...) , ou na prioridade dada à novela: Porque vivo num tempo sem ostras, com dinheiro/ no bolso dos outros e discretas ditaduras, chove/ granizo no campo e a televisão deixa este jogo para/ não atrasar muito a novela (...) .

Falta de pernas

Ironia triste diante do cotidiano de impossibilidades, da força da propaganda e valores duvidosos, ainda no mesmo 28- Bragantino 0 x 0 Vasco (03, 10, 09), sem acesso à transmissão, resta ao sujeito se redimir: tentarei amar como se amasse até o extrato de tomate que surge/ numas propagandas (...) . Perder não é simples nem compensado com amor: Mentira que perdi, perdi/ meu tempo atrás de um/ posto de gasolina ou diante de/ pouca gente a me escutar dizer poemas / Sem ti não há mergulho nem piscina .


Resta-lhe parar, por falta de pernas , taça na mão. A estruturada linguagem poética eleva-se contra a pequenez, na dura digestão da propaganda e do mundo atual, nos jogos com a tradição, em ultrapassar o que seria uma escrita apenas pretensamente culta, para dar lugar a uma que retalha linguagens, Escolher persona, eu penso, porra é/ escolher persona? It's not up to me (...) , e entalha versos que tocam hoje o poeta Sá de Miranda de séculos atrás: "Meu tudo preto, já que sói ser coisa alguma, é sempre insônia (...)". Vitória no uso da sextina no poema 32 Vasco 2 x 1 Bahia (24, 10, 09), da redondilha maior, onde Da casa se nota o mundo , e do decassílabo, pois no mundo está em perigo todo o resto .

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